quarta-feira, 9 de março de 2016

resguardo

Eles se falam todo dia as uma, o mesmo ritual é repetido, dirige-se ao quintal para que ninguém possa ouvi-lo e sem delongas telefona. Pobre rapaz, primeiro relacionamento aos vinte dois, o vi crescer, e cresci junto.

Aos seis atirei meu gato de estimação sobre seu peito enquanto minha avó assava um bolo de trigo, ele carrega as cicatrizes do meu fatídico ato até hoje.

Eu sonho em viajar o mundo, aprender seis idiomas aos vinte. Ele sonha em ter um automóvel da moda, um corpo bonito e uma adega de vinhos em casa.

Eu choro copiosamente toda vez que vejo Hamlet no teatro. Ele aluga filmes de ação uma vez por semana e bebe uísque em copo de extrato de tomate.

Eu sou fadado a solidão e tudo que com ela se carrega.
Ele tem a vida toda pela frente.              

Ele me pergunta por que uso óculos escuro as nove da noite
Eu respondo

A vida tem sido dura, e essa é minha vingança.

sábado, 5 de março de 2016

Um dia, três outonos.


Texto para se ler enquanto ouve o brilhantississsimo Milton.



Seis da tarde, de um fatídico dia de dois mil e seis. As pernas largas dando longas passadas, o batom coral desbotando sobre os lábios e uma argola faltando numa das orelhas de abano. Noticiou-se em caixa alta e pra quem quisesse ouvir a demissão no singelo emprego de bairro como balconista de locadora de vídeo, nessas alturas o sistema já andava a passos breves, a praticidade e agilidade da pirataria definhava toda a cordialidade do sistema de locação de fitas, era reerguido ora ou outra pelos catálogos de filmes eróticos sobre o balcão de mármore e seus fiéis e assíduos viúvos solitários e suas pochetes largas e surradas sobre seus ombros também solitários.

ato II:

Passos ágeis com os tamancos envernizados comprados a fino trato e a prestações, procura o molho de chaves ainda atordoada e questionando a si mesma de onde havia tirado tanta coragem para abdicar de seu único ganha pão, logo ela recém separada de um casamento fadado ao fracasso, morando com os pais e com um filho de seis anos sem assistencialismo paterno. Logo ela, dona de poucas vitórias e inúmeros fracassos ressoando sobre a mente. Respira fundo como quem canta um desses mantras dignos de romaria religiosa anualmente clamados no norte do México. E eis que chega a hora, deita o seu um metro e setenta e um (sustentado diariamente atrás de um maldito balcão de mármore e seus tamancos envernizados que ora ou outra traçam longos calos sobre os pés) sobre o sofá revestido com uma dessas mantas florais horrendas dadas por Jacira  amiga e companheira de longas noite de labuta no hospital com tia Joelma.
Os dedos amarelados de longos anos como fumante ligam o rádio que logo responde com ruídos, sorri sozinha por achar que os ruídos tratam se de um breve prelúdio sobre suas vida, sintoniza o rádio na estação mais próxima, encontra o que quer ouvir (ou o que precisa) uma dessas melodias suaves, milton nascimento? ouvia quando garota, repete em breve diálogos consigo mesma. Rabisca os classificados do jornal com enormes bolas vermelhas de caneta tinteiro, limpa os olhos sujos de rímel, passa o café e renasce como tantas Marias por aí.